março 10, 2024

O Acontecimento - Annie Ernaux

Título original: 
L'événement
Ano da edição original: 2000
Autor: Annie Ernaux
Tradução: Maria Etelvina Santos
Editora: Livros do Brasil

"Uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Tomada pela vergonha, consciente de que aquela gravidez representará um falhanço social para si e para a sua família, sabe que não poderá ter aquela criança. Mas, na França de 1963, o aborto é ilegal e não existe ninguém a quem possa acorrer. Quarenta anos mais tarde, as memórias daquele acontecimento continuam presentes, num trauma impossível de ultrapassar e cujas sombras se estendem para além da história individual. Escrito com uma clareza acutilante, sem artifícios, este é um romance poderoso sobre sofrimento, justiça e a condição feminina. Escrito por Annie Ernaux em 1999, foi adaptado ao cinema em 2021 por Audrey Diwan, num filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza. "

Primeira incursão pela, recentemente, Nobelizada Annie Ernaux e, sem grandes expectativas, confesso.
 
O Acontecimento é um livro duro, onde é relatada a saga dantesca, levada a cabo por uma jovem de 23 anos que, perante a confirmação de uma gravidez não planeada e não desejada, encontra todo o tipo de obstáculos que a impedem de fazer um aborto seguro.
Estamos em 1963, em França e, todos à sua volta encolhem os ombros, os médicos, todos homens, não a ajudam, talvez por medo de represálias, mas também porque acham que é dever das mulheres arcarem com essa responsabilidade. Os colegas e amigos também não lhe estendem a mão e não a acompanham nesta jornada.
Ela, envergonhada pelo que lhe aconteceu, não conta aos pais que está grávida e desespera por tirar de dentro dela algo que não deseja, que vê como sendo um acontecimento que será um retrocesso na sua vida.
Sozinha, em busca de uma solução, bate a todas a portas de que se lembra e, naturalmente, acaba por encontrar uma saída, igual à de tantas outras mulheres que se viram, e vêm, obrigadas a fazê-lo de forma clandestina e pouco segura.

Tinha de ser assim? Hoje, mas também em 1963, sabemos que não, não tinha de ser assim. Hoje em alguns sítios do mundo já não tem de ser assim mas, na maioria do países, a mulher tem de carregar sozinha as consequências da decisão de querer fazer um aborto, seja porque motivo for, correndo todo o tipo de riscos, de saúde e legais.

As liberdades e direitos de todos nós nunca estão garantidos, acho que nos vamos apercebendo cada vez mais disso e, num mundo que parece estar cada vez mais saudosista de tempos cinzentos e bolorentos, os direitos das mulheres serão os primeiros a ser revisitados. Não tenho qualquer dúvida disso. Por isso, no que estiver ao nosso alcance, vamos todos contribuir para uma sociedade mais empática e justa. Pode ser? 

Sobre o livro, :) não tenho a certeza se gostei da escrita ou da forma como relata os acontecimentos. É muito direta e muito assertiva e como o tema é difícil, parece que lhe falta sensibilidade. Mas, por outro lado pode ser que a ideia seja mesmo essa. Há, ainda, uma repulsa natural pelo que é relatado e que me deixou de certa forma desconfortável.
Posto isto, acho que gostei mas ao mesmo tempo não gostei. Vou ter de ler mais livros dela. Tenho a sensação de que é uma daquelas que primeiro se estranha e depois se entranha. 

Recomendo. 

Boas leituras. 

Excerto (pág. 33)
"As raparigas como eu estragavam os dias aos médicos. Sem dinheiro e sem contactos - de outro modo não iriam, às cegas, desembocar neles -, elas traziam-lhes à memória a lei que os poderia mandar para a prisão e proibi-los de exercer para o resto da vida. Não ousavam dizer a verdade, essa de que não iriam arriscar perder tudo em nome dos belos olhos de uma rapariguinha estúpida ao ponto de ser deixar engravidar. A não ser que, sinceramente, preferissem morrer a infringir uma lei que deixava morrer as mulheres. Mas todos deveriam pensar que, ainda que as impedissem de abortar, elas acabariam por arranjar maneira de o fazer. Em face de uma carreira destruída, uma agulha de tricô na vagina não significava grande coisa. "

dezembro 10, 2023

[Ebook] A Coisa à Volta do teu Pescoço - Chimamanda Ngozi Adichie

Título: The Thing Around Your Neck 
Ano da edição original: 2009
Autor: Chimamanda Ngozi Adichie
Tradução do Ingês: Ana Saldanha
Editora: Publicações Dom Quixote (ISBN: 9789722054546)

"Depois de Meio Sol Amarelo (Orange Prize 2007) e A Cor do Hibisco (Commonwealth Writers’ Prize 2005), Chimamanda Ngozi Adichie regressa com doze histórias protagonizadas por heroínas memoráveis. Divididas entre dois continentes - África e América -, estas mulheres lutam por um lugar e uma identidade no mundo moderno mas também pela preservação dos valores da sua cultura de origem. Quer vivam no inferno de um país como a Nigéria ou num subúrbio aparentemente calmo dos Estados Unidos, elas não têm uma vida fácil. As ameaças que enfrentam podem ter origem na guerrilha ou no funcionamento de um forno microondas mas os seus dilemas contêm toda a história de um continente."

Primeiro contacto com Chimamanda Ngozi Adichie, escritora nigeriana muito premiada e que tem andado no meu radar por causa de Meio Sol Amarelo, que volta não volta aparece na minha vida e sempre com críticas muito boas. Decidi começar com um livro mais pequeno, para ter uma ideia da escrita e o tipo de histórias e, gostei muito. Gostei muito da escrita e das histórias.
A Coisa à Volta do teu Pescoço, traz-nos doze histórias protagonizadas por mulheres nigerianas. Algumas passam-se nos EUA outras na Nigéria, sendo que a Nigéria está omnipresente em todas  histórias e, acima de tudo na vida destas mulheres. 

As mulheres destas histórias representam, de certa forma, todas as mulheres do mundo mas, acima de tudo, são um retrato da mulher africana, tendo de viver em sociedades patriarcais, muito religiosas e pouco tolerantes à ideia de a mulher ter outras ambições que não sejam as de ser esposa, mãe e cuidadora.
Temos mulheres instruídas e inteligentes e temos mulheres menos instruídas e inteligentes. Temos em todas elas uma vontade de fazer diferente e de quebrar o ciclo de descriminação. Todas elas querem ser donas das suas vidas, quer seja a cuidar da família ou a construir uma carreira. 
Nestas histórias, existem vários tipos de homens, os orgulhosos da sua superioridade, de mente fechada, presos à tradições que apenas os favorecem a eles e, existem os homens que são verdadeiros parceiros e que não vêm na mulher uma ameaça e procuram ir equilibrando a balança. Mais dos primeiros e menos dos segundos mas, o importante é não desistir e, um dia todas, em todo o lado, seremos tratadas com igualdade e teremos as mesmas oportunidades.

Gostei bastante, tanto que já comprei o Meio Sol Amarelo. A escrita é bem-humorada, mesmo quando relata situações que de engraçado não têm nada. O tema é pertinente, hoje e sempre e por isso não hesito em recomendar!

Boas leituras!

Excerto:
"O teu tio na América, que tinha inscrito o nome de todos os membros da tua família na lotaria dos vistos americanos, disse que podias viver com ele até te orientares. (...) 
Ris-te com o teu tio e sentiste-te à vontade na casa dele; a mulher dele chamava-te nwanne, irmã, e os seus dois filhos, em idade escolar, chamavam-te Titi. Falavam igbo e comiam garri ao almoço e era como em casa. Até o teu tio vir à cave atravancada onde dormias com caixotes velhos e embalagens e te apertar à força contra si, apertando-te as nádegas e gemendo. Ele não era verdadeiramente teu tio; na realidade, era irmão do marido da irmã do teu pai; não há laços de sangue. Depois de o empurrares, ele sentou-se na tua cama - ao fim e ao cabo, a casa era dele - e sorriu e disse que aos vinte e dois anos já não eras propriamente uma criança. Se tu deixasses, ele faria muitas coisas por ti. As mulheres espertas era o que faziam. Como é que julgavas que aquelas mulheres em Lagos com empregos bem pagos chegavam lá? Até mesmo as mulheres na cidade de Nova Iorque?
Fechaste-te às chave no quarto de banho até ele voltar lá para cima e na manhã seguinte foste embora, a pé pela longa estrada sinuosa, sentindo o cheiro a peixe que vinha do lago."

novembro 05, 2023

[Ebook] Bichos - Miguel Torga

Título original: Bichos
Ano da edição original: 1940
Autor: Miguel Torga
Editora: Publicações Dom Quixote (Ebook ISBN: 9789722057004)

"Uma nova edição pelos 75 anos de uma obra que tem acompanhado muitas gerações de leitores. Incluído no Plano Nacional de Leitura, Bichos é um dos mais lidos e famosos livros de Miguel Torga. A respeito desta obra dirigia-se ao leitor com as seguintes palavras: «São horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé. Tens sido de uma constância tão espontânea e tão pura a visitá-la, que é preciso que me liberte do medo de parecer ufano da obra, e venha delicadamente cumprimentar-te uma vez ao menos. Não se pagam gentilezas com descortesias, e eu sou instintivamente grato e correcto. Este livro teve a boa fortuna de te agradar, e isso encheu-me sempre de júbilo. [...] És, pois, dono como eu deste livro, e, ao cumprimentar-te à entrada dele, nem pretendo sugerir-te que o leias com a luz da imaginação acesa, nem atrair o teu olhar para a penumbra da sua simbologia. Isso não é comigo, porque nenhuma árvore explica os seus frutos, embora goste que lhos comam. Saúdo-te apenas nesta alegria natural, contente por ter construído uma barcaça onde a nossa condição se encontrou, e onde poderemos um dia, se quiseres, atravessar juntos o Letes [...].» "

Nunca tinha lido Miguel Torga. Admito que tenho um desconhecimento enorme sobre escritores portugueses do século XX, principalmente até aos anos 70, 80. E tenho, confesso, uma ideia errada da escrita, dos temas e do tipo de escritores que são. Na minha cabeça são chatos, complicados, cheios de palavras desnecessárias e pesados... Não sei quando e como é que este preconceito se instalou em mim mas acho que o estou a quebrar porque, na verdade, tenho tido grandes, e boas, surpresas quando os leio. 
Desconheço a maioria dos escritores da época e a verdade é que nos muitos anos de escola estes pouco ou nada são mencionados... Como é que só recentemente ouvi falar de Maria Judite de Carvalho?!  Acho, sinceramente, que saímos todos a perder. 

Decidi ler Bichos depois de ter visto na RTP1, o episódio do O Leproso, que faz parte da mini série Histórias da Montanha, onde cada episódio é baseado num conto de Miguel Torga. Gostei imenso do que vi e intuí que muito do que tinha gostado era fruto da qualidade de Miguel Torga e não apenas da qualidade da produção. E não me enganei. 

Em BichosMiguel Torga, presenteia-nos com contos sobre animais, sobre animais de duas patas mas principalmente sobre os outros animais. A maioria dos contos são contados na perspetiva dos próprios animais o que torna tudo mais interessante, curioso e muito divertido. 

Gostei muito da escrita, rica e cheia de vida, muito visual, sem ser excessivamente descritiva e adorei as histórias, muito bem estruturadas e criativas. 

Recomendo sem reservas e, faço questão de ter uma cópia física deste Bichos, e também dos Contos da Montanha. Acho que Miguel Torga merece um espacinho nas minhas estantes. :) 

Vejam a mini série na RTP. São cinco episódios e está disponível na plataforma RTP Play. Vale muito a pena. 

Boas leituras. 

Excerto:
"É difícil. Isto de começar num monturo, e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida... Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois... Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
- Já hoje ouvi a cigarra...
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses leviana. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera.  Protoplasma, lagarta, ninfa..."

[Ebook] Afirma Pereira - Antonio Tabucchi

Título original: 
Sostiene Pereira
Ano da edição original: 2013
Autor: Antonio Tabucchi
Tradução: José Lima
Editora: Leya (Ebook ISBN: 9789896603243)

"Tendo por pano de fundo o salazarismo português, o fascismo italiano e a guerra civil espanhola, Afirma Pereira é a história atormentada da tomada de consciência de um velho jornalista solitário e infeliz. Antonio Tabucchi nasceu em Pisa (1943-2012), onde fez os seus estudos, primeiro na Faculdade de Letras e depois na Scuola Normale Superiore. Ensinou nas Universidades de Bolonha, Roma, Génova e Siena. Foi Visiting Professor no Bard College de Nova Iorque, na École de Hautes Études de Paris e no Collège de France. Publicou 27 livros, entre romances, contos, ensaios e textos teatrais. As suas obras estão traduzidas em mais de 40 países. Recebeu numerosos prémios nacionais e internacionais. Sozinho, ou com Maria José de Lancastre, traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa. Considerando que a sua pátria é também a língua portuguesa, escreveu um romance em português, Requiem, 1991. O seu teatro foi levado ao palco, entre outros, por Giorgio Strehler e Didier Bezace. O Fio do Horizonte, Nocturno Indiano, Afirma Pereira e Requiem foram adaptados ao cinema respectivamente por Fernando Lopes, Alain Corneau, Roberto Faenza e Alain Tanner."

Pereira é um jornalista que, na verdade, já pouco faz de jornalismo.
É responsável pela nova página Cultural do Lisboa, um jornal "apolítico e independente" o que, na verdade, significa que está completamente alinhado com a propaganda do Governo.
Trabalha sozinho, num escritório só para si e o seu único contacto regular é com o Diretor do jornal, que parece estar sempre na termas em Cascais, e com a porteira do prédio onde tem o escritório, com quem Pereira não simpatiza e que acha que é uma informante da PIDE.

Pereira é um homem solitário, com excesso de peso e que perdeu a mulher há uns anos. Nunca perdeu muito tempo a pensar sobre o mundo que o rodeia, não se interessa por política e os seus dias são passados entre idas ao escritório e os almoços no Café Orquídea, onde tenta resistir às omeletes, por indicação médica, e passa os dias a beber limonadas com açúcar, porque acha que assim vai perder peso.

Ultimamente pensa muito na morte e, é por isso que o artigo de um jovem filósofo, Monteiro Rossi, sobre o tema, lhe desperta a atenção. Num impulso que não consegue explicar, procura o nome dele na lista telefónica, liga-lhe e oferece-lhe trabalho. Pede-lhe que escreva o obituário de alguém conhecido, culturalmente relevante, e que ainda não tenha morrido, para que esteja pronto a publicar na nova página cultural quando a pessoa morrer.
Para sua surpresa Rossi aceita de imediato, embora não seja escritor e a morte não o interesse por aí além. Está a passar por dificuldades e precisa de dinheiro.
 
Pereira é confrontado, pela primeira vez, em anos, com alguém que o obriga a estar atento ao mundo que o rodeia. Monteiro Rossi entrega-lhe um obituário que nada tem a ver com o que Pereira lhe pediu. Rossi recusa-se a escrever sobre figuras simpatizantes do regime e debate-se contra a neutralidade no conteúdo que Pereira lhe pede. E é nestas trocas que Pereira se vê, de repente, confrontado com alguém que se movimenta num meio que até então lhe era completamente desconhecido e, sem que perceba muito bem porquê, não consegue afastar-se. Sente, pelo contrário, uma atração pela agitação que Rossi e a namorada trazem à sua pacata vida. 
E é assim que Pereira se torna numa pessoa que, no verão quente de 1938, entra no radar da polícia política portuguesa. :) 

Embora não tenha sido propositado, li Afirma Pereira, em Abril do ano passado, durante as comemorações do 25 de Abril. Antonio Tabucchi, um estrangeiro, com  uma forte ligação a Portugal, que não viveu na ditadura, cujas referências são necessariamente diferentes, parece ter acertado na descrição da época e dos portugueses. 

Gostei muito da escrita bem humorada, do ritmo, da história e das personagens, que me pareceram muito credíveis, ao mesmo tempo que provocam uma certa estranheza.

Afirma Pereira é um livro pequeno que se lê muito bem. 

Recomendo sem qualquer hesitação e Antonio Tabucchi é, de certeza, um autor a repetir.

Boas leituras.


Excerto:
"Pereira afirma que naquela noite a cidade parecia nas mãos da polícia. Estavam em todo o lado. Tomou um táxi até ao Terreiro do Paço e debaixo das arcadas viam-se camionetas e guardas com espingardas. Talvez temessem manifestações ou concentrações na rua, e por isso controlavam os pontos estratégicos da cidade. (...) Aqui desceu, afirma, e encontrou mais polícia. Desta vez teve de passar diante do pelotão, o que lhe provocou um ligeiro mal-estar. Ao passar ouviu um oficial dizer aos soldados: E lembrem-se rapazes que os subversivos estão sempre emboscadas, é melhor estar de olhos abertos. Pereira olhou à sua volta, como se aquele conselho lhe fosse dirigido, e não lhe pareceu que fosse preciso estar de olhos abertos. A Avenida da Liberdade estava tranquila, o quiosque dos gelados estava aberto e havia pessoas nas mesas a tomar o fresco. Seguiu num passo tranquilo pelo passeio do meio e nessa altura, afirma, começou a ouvir música. Era uma música suave e melancólica, de guitarras de Coimbra, e achou estranha aquela combinação de música e polícia. Pensou que vinha da Praça da Alegria e realmente assim era, pois à medida que se aproximava a música aumentava de intensidade. 
Não parecia nada uma praça de uma cidade em estado de sítio, afirma Pereira, pois não se viam polícias, ou antes, viu apenas um guarda-nocturno que lhe pareceu ébrio e que dormitava num banco. A praça estava enfeitada com grinaldas de papel, com lâmpadas coloridas amarelas e verdes que pendiam de fios estendidos de uma janelas para outras. Havia umas quantas mesas ao ar livre e alguns pares dançavam. Reparou então numa larga tira de pano esticada entre duas árvores da praça com uma enorme inscrição: Viva Francisco Franco. E por baixo, em letras mais pequenas: Vivam os militares portugueses em Espanha. 
Afirma Pereira que só nesse momento compreendeu que se tratava de uma festa salazarista, e por isso não precisava de ser vigiada pela polícia. Mas só então reparou que muitas pessoas vestiam a camisa verde e traziam um lenço ao pescoço. Deteve-se apavorado, e num segundo pensou em várias coisas diferentes. Pensou que talvez Monteiro Rossi fosse um deles, pensou no carroceiro alentejano que tinha manchado de sangue os seus melões, pensou no que diria o Padre António se o visse naquele sítio. Pensou em tudo isto e sentou-se no banco onde o guarda-nocturno dormitava, e deixou-se embalar pelos seus pensamentos."

junho 18, 2023

O Peso do Coração - Rosa Montero

Título: El Peso del Corazón
Ano da edição original: 2015
Autor: Rosa Montero
Tradução: Helena Pitta
Editora: Porto Editora

"Três anos, dez meses e vinte e um dias.

É o tempo que resta a Bruna Husky. A detetive replicante, que é uma sobrevivente capaz de tudo, continua a debater-se com a independência total e a necessidade desesperada de carinho, como uma fera aprisionada na jaula de uma existência a prazo.

Contratada para resolver um caso aparentemente simples e lucrativo, Bruna vê-se envolvida numa trama de corrupção internacional de tal forma sinistra e ameaçadora que pode comprometer a existência da própria Terra. Num futuro no qual os direitos, outrora considerados essenciais, se tornaram reféns do dinheiro, a replicante revela-se uma guerreira empenhada na luta contra esquemas de organização social baseados em preconceitos, regras rígidas e fanatismo, que põem em causa a existência de todos os seres.

O Peso do Coração é um romance distópico que, a partir do debate claro e atual das consequências das opções do presente, reflete de forma madura sobre as condições de vida e da morte, e sobre aquilo que é, na essência, a própria definição de humanidade, constituindo um regresso extraordinário ao mundo fascinante de Lágrimas na Chuva."

Tenho a estranha sensação de que cada vez mais as distopias me parecem mais realistas, menos improváveis e, por isso, mais perturbadoras. É o caso deste O Peso do Coração de Rosa Montero, que se passa num futuro não tão longínquo, onde o Homem quase destruiu a Terra, conquistou o espaço, inventou Tecno-Humanos, batizou-os de Replicantes e, estes conquistaram direitos.

A Terra ainda existe, mas é um lugar diferente do que conhecemos e está em pleno processo de renascimento. A sociedade parece continuar assente numa lógica de dinheiro: quem o tem pode pagar qualidade de vida, quem não o tem, é como se não existisse. Pensando bem, afinal a Terra não é assim um lugar tão diferente. Talvez a diferença esteja no descaramento com que tudo é feito, sem dilemas morais porque, as coisas são como são. Uma questão de sobrevivência, a normalização da lei do mais forte, talvez.

Os replicantes são uma espécie de androides muito evoluídos que coabitam com os humanos, convivem com os humanos e relacionam-se com os humanos. Parecem humanos, agem como humanos, parecem sentir como os humanos mas não são humanos. Tem um tempo predeterminado de vida e "morrem" de uma forma feia e humana. Quando se aproxima a data em que são desativados, as suas partes orgânicas começam a degradar-se, até que deixam de funcionar por completo na data que estava programada desde a sua criação.

Bruna Husky é um replicante e, restam-lhe três anos, dez meses e vinte e um dias de vida e ela não consegue deixar de pensar nisso. Sente a toda a hora a sua finitude e o aproximar do seu fim.  Bruna é um Replicante de combate e, desde que foi dispensada do serviço militar, é detetive.
Bruna sempre foi diferente dos outros porque quem a criou, colocou em Bruna algumas das suas memórias pessoais, o que a tornou, se assim se pode dizer, mais humana, porque as memórias, para todos os efeitos, são reais. Não são dela, ela sabe que não lhe pertencem, mas a memória dos sentimentos que lhe foi implantada é real. Isto torna Bruna mais sensível, empática e até capaz de amar, romanticamente, os humanos.

O Peso do Coração é o segundo livro que Rosa Montero escreveu com Bruna Husky, o primeiro é Lágrimas na Chuva. Não tendo lido o primeiro, não me senti deslocada no mundo de Bruna. Parece-me que podem perfeitamente funcionar de forma independente.

Neste, Bruna vê-se envolvida numa investigação que coloca em risco os três anos, dez meses e vinte e um dias que lhe restam. Vê-se de volta às Zonas Zero, é mordida por uma miúda meio selvagem e, para lhe salvar a vida, aceita ficar responsável por ela, trazendo-a de volta consigo e, volta a trabalhar com Lizard, o polícia com quem tem um relação complicada, a todos os níveis.

Tendo como pano de fundo a investigação de Bruna, vamos vendo, através dos seus olhos, o estado da humanidade, as consequências de todas as decisões de humanos pouco escrupulosos, baseadas no dinheiro, no poder efémero mas, também as decisões de humanos bem intencionados que não souberam fazer de outra forma. 
São interessantes os dilemas de Bruna, que vive torturada, sabendo que não é humana mas sentindo-se como uma. Capaz de amar, de sentir prazer e dor, de questionar as suas ações e as dos outros, de tomar decisões que vão para além do seu bem-estar. Não deixa, no entanto, de pensar até que ponto tudo o que sente não está programado e, por isso, Bruna é tão Replicante como os seus semelhantes?
Até que ponto, nós humanos, não estamos também pré-programados? Até que ponto não somos apenas química e o que sentimos, não são apenas reações químicas, balanços energéticos que podem ser replicados num laboratório?
É um livro que é mais do que a investigação, o entretenimento e a ação. Levanta algumas questões sobre as quais devemos todos refletir, que nos assustam, mas das quais não devemos fugir. 

Este é o terceiro livro que li de Rosa Montero, e acho-os a todos muito diferentes uns dos outros e todos eles são muito bons e surpreendentes. Gosto muito da escrita dela, da forma como desenvolve as histórias e gosto dos temas. Gosto mesmo muito de Rosa Montero. Para além do conteúdo dos livros, acho que têm dos títulos mais originais e bonitos e, adoro todas as capas que circulam por cá. É o pacote completo! :)

Recomendo sem qualquer hesitação.

Boas leituras! :)

Excerto (pág. 9)
"Os humanos são paquidermes, lentos e pesados, ao passo que os Replicantes são tigres rápidos e desesperados, pensou Bruna Husky, consumida pela impaciência de ter de esperar na fila. Recordou uma vez mais a frase de um autor antigo que, um dia, o seu amigo arquivista citara: «As ininterruptas idas e vindas do tigre diante dos barrotes da jaula para que não se lhe e escape o único e brevíssimo instante da salvação.» Impressionada, Bruna decorara-a. Ela era esse tigre, preso no minúsculo cárcere que era a sua vida. Os humanos, com as suas existências longuíssimas e velhice intermináveis, costumavam glorificar com vaidade as vantagens da aprendizagem; até das mas experiências, defendiam, se podiam tirar lições. Husky é que não tinha tempo a perder com tais tontices; como qualquer androide, só vivia uma década, que terminaria dentro de três anos, dez meses e vinte e um dias, e tinha a certeza de que havia saberes que não valia a pena interiorizar. Por exemplo, teria vivido feliz sem conhecer a imundície das Zonas Zero; no entanto ali estava ela no que parecia agora ser uma viagem inútil à miséria."

junho 03, 2023

A Breve Vida das Flores - Valérie Perrin

Título: 
Changer l'eau des Fleurs
Ano da edição original: 2018
Autor: Valérie Perrin
Tradução: Maria de Fátima Carmo
Editora: Editorial Presença

"Íntimo, poético e luminoso.
O romance protagonizado por uma mulher que, contra tudo e contra todos, nunca deixa de acreditar na felicidade.
Violette Toussaint é guarda de cemitério numa pequena vila da Borgonha. A sua vida é preenchida pelas confidências - comoventes, trágicas, cómicas - dos visitantes do cemitério e pelos seus colegas: três coveiros, três agentes funerários e um padre. E os seus dias pareciam ser assim para sempre. Até à chegada do chefe de polícia Julien Seul, que quer deixar as cinzas da mãe na campa de um desconhecido.
A história de amor clandestino da mãe daquele homem afeta de tal forma Violette, que toda a dor que tentou calar vem ao de cima. É tempo de descobrir o responsável pela tragédia que afetou a sua vida.
Atmosférico, tocante e - tantas vezes - hilariante, este é um romance de vida: dos que partiram e vivem em nós, da luz que se pode revelar mesmo na mais plena escuridão. Porque às vezes basta a simplicidade de um gesto, basta a frescura da água viva para nos devolver ao mundo, a nós mesmos e aos outros."

A Breve Vida das Flores é um livro que tem andado nas bocas do mundo literário e do qual toda a gente fala. 

Não quero alongar-me muito sobre a história porque teria dificuldade em não contar demais. Corro o risco de estragar a vossa viagem pela vida de Violette Toussaint. Por isso, digo apenas que é um romance, cheio de tristezas, desgostos, lágrimas, desespero, de raiva e de dor mas, que ao mesmo tempo, está cheio de esperança, de bondade, amizade, aromas reconfortantes e cor. 
Tudo isto, tendo como pano de fundo, uma passagem de nível e um cemitério. Digamos que são os sítios menos prováveis para servirem de abrigo a todos estes sentimentos e, muito menos para serem os sítios onde há encontros e desencontros e onde se iniciam verdadeiras histórias de amor, que é o que este A Breve Vidas das Flores acaba por ser. Dos vários tipos de amor e não apenas o amor romântico.

O livro está bem escrito, lê-se bem, não obstante ser um livro grande, lê-se rápido porque a escrita é fluida. A história é interessante e foge ao típico romance de mulher conhece homem perfeito, enfrentam desafios pelo meio e depois, vivem felizes para sempre. Achei que ia ser algo deste género e não é de todo esse tipo de romance.
Agora que penso sobre o livro, acho que está mais para o drama, uma daquelas histórias da vida real, ficcionada, para ser mais comercial.
Ou seja, Violette Toussaint, a ser real, poderia ser a convidada, de um qualquer programas das tardes televisivas, onde iria partilhar a sua história de superação e onde todos iríamos chorar muito. E acho que é por isso que, embora reconheça qualidades no livro, até alguma originalidade, não consegui gostar assim tanto dele. 
A verdade é que não me identifico com o género de história e, para além disso achei que às tantas, a história se tornou repetitiva.

Não tinha grandes expectativas, por isso, não me sinto defraudada e não dou por perdido o tempo que passei a lê-lo. De todo. Como disse, lê-se bem, está bem escrito e é suficientemente interessante para que continuasse a passar à página seguinte.
É um livro que me vai ficar na memória? Provavelmente não. Mas se tudo o que lêssemos nos ficasse gravado na memória, não teríamos espaço para mais nada. :)

Recomendo, porque dentro do género me pareceu bastante interessante e original.

Boas leituras!

Excerto (pág.10):

"Chamo-me Violette Toussaint, Era guarda de passagem de nível, agora sou guarda de cemitério.
Saboreio a vida, bebo-a em que pequenos goles como chá de jasmim com mel. E quando chega o final de tarde e os portões do meu cemitério se fecham e a chave se pendura à porta da minha casa de banho, fico no paraíso.
Não o paraíso dos meus vizinhos da frente, Não.
O paraíso dos vivos; um trago de porto - colheita de 1983 -, que me traz José-Luís Fernandez todos os dias 1 de setembro. Um resto de férias vertido num cálice de cristal, uma espécie de verão extemporâneo que desarrolho por volta das sete da tarde, faça chuva, neve ou vento.
Dois dedais de líquido rúbi. O sangue das vinhas do Porto. Fecho os olhos. E saboreio. Um único trago basta para me alegrar o serão. Dois dedais porque adoro a embriaguez, mas não o álcool.
José-Luís Fernandez põe flores na campa de Maria Pinto, nome de casada Fernandez (1956-2007), uma vez por semana, exceto em julho, que é quando faço eu o turno. Daí o porto, para me agradecer.
O meu presente é um presente do céu. É o que digo a mim mesma todas as manhãs, quando abro os olhos.
Eu estava muito infeliz; aniquilada, mesmo. Inexistente. Vazia. Estava como os meus vizinhos, mas para pior. As minhas funções vitais mantinham-se, mas sem que eu estivesse no interior. Sem o peso da alma, que pesa, ao que parece, quer sejamos gordos ou magros, altos ou baixos, jovens ou velhos, vinte e um gramas.
Contudo, como nunca tive gosto pela infelicidade, decidi que isso não iria durar. É necessário que a infelicidade acabe, um dia."

junho 02, 2023

Vinte e Quatro Horas da Vida de uma Mulher - Stefan Zweig

Título: Vierundzwanzig Stunden aus dem Leben einer Frau
Ano da edição original: 1927
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Alice Ogando
Editora: Publicações Europa-América

"A rotina de um hotel na Riviera é abalada por uma notícia escandalosa. Uma mulher abandona o marido e as duas filhas, em nome de uma paixão por um jovem que havia acabado de conhecer. Este episódio despoleta uma acesa discussão entre os hóspedes do hotel e leva a Senhora C., uma aristocrata inglesa de sessenta e sete anos, a recordar um episódio secreto da sua vida que a tortura há mais de duas décadas. Vinte e quatro horas na vida de uma mulher é um relato apaixonante e intimista sobre a vida de uma mulher que se liberta das correntes do pudor e do preconceito social em nome de uma paixão avassaladora."

Num hotel na Riveira, quando uma mulher abandona o marido e as filhas para fugir com um homem que tinha acabado de conhecer, todos ficam chocados e todos os hóspedes têm uma opinião sobre o assunto, sendo que a maioria é bastante crítica e intolerante com a mulher fugitiva. Nenhum deles a conhece, no entanto, todos eles não hesitam em classificar como inaceitável e vergonhoso o comportamento desta mulher.
Apenas um jovem homem parece sentir necessidade de, de certa forma, apoiar a mulher fugitiva, tentando trazer para a discussão pontos de vista que vão para além dos argumentos do socialmente aceitável, para uma mulher casada e com filhos.

A Senhora C., sexagenária, e uma das hóspedes, fica impressionada com a atitude deste jovem na defesa da mulher fugitiva. Talvez por isso julga ter encontrado, neste total desconhecido, o ouvinte perfeito para a sua história. Uma história, que aconteceu há vinte anos atrás, e que nunca partilhou com ninguém. Talvez se a partilhar, se a contar em voz alta, a alguém que não a julgue, consiga expurgar todos os sentimentos de culpa e de vergonha que a atormentam desde então.

Há vinte anos atrás, a Senhora C., recentemente enviuvada e devastada por ter perdido o companheiro de uma vida inteira, sente-se perdida, por não saber como viver sem o marido, e solitária, com os filhos crescidos e ocupados nos seus afazeres. Decide, por isso, sair da cidade onde vive e ir até ao casino passar algum tempo entre desconhecidos. Foi algo que sempre gostou de fazer e o objetivo nunca foi jogar. O que a atrai é poder observar os jogadores, mais precisamente as suas mãos. É fascinada por mãos e, é impressionante aquilo que se consegue saber sobre desconhecidos, quando estes não se sabem observados, principalmente quando se encontram mais vulneráveis, como acontece num casino, a apostar muitas vezes tudo o que têm e o que não têm.
É no casino que a Senhora C. repara num par de mãos como nunca tinha visto até então. Umas mãos delicadas, nervosas e agitadas e que espelham o turbilhão de emoções que habitam o homem a quem pertencem.
Fascinada pelo que observa, quando o homem sai do casino, arruinado e claramente perturbado, a Senhora C., é incapaz de não sair atrás dele.

Toda a história começa aqui, na interação desta viúva, nos seus quarentas, com um desconhecido com metade da idade dela, que não consegue abandonar à sua sorte, embora não perceba muito bem porquê. Não percebe, ou não quer perceber, porque teria de admitir que o interesse que o homem desperta nela e parece ir além do instinto maternal. 
A vergonha e a perplexidade não a abandonam ao longo daquelas vinte e quatro horas mas, ao mesmo tempo não a retraem ou impedem de continuar e de não abandonar o homem.
A vergonha e a perplexidade nunca a abandonaram durante os vinte anos que separam aquelas vinte quatro horas e a noite no hotel da Riviera em que decide partilhar a sua história com mais um desconhecido.

É um livro pequeno, que se lê num instante mas que está cheio de conteúdo e, está muito bem escrito, num tom meio irónico e leve. 

Não conhecia Stefan Zweig, não me recordo porque entrou na minha lista de autores a conhecer. O mais provável é ter sido sugerido por alguém cujas opiniões valorizo mas, o que importa é que fiquei agradavelmente surpreendida e vou querer ler mais livros dele.

Recomendo sem qualquer hesitação.

Aproveitem a Feira do Livro de Lisboa para encontrarem os livros dele a preços mais convidativos.

Boas leituras!

Excerto (pág. 63)
"Nunca, até esse momento (não me canso de o repetir), vira um rosto onde a paixão brotasse tanto a descoberto, tão bestial na sua impudica nudez, e fiquei para ali completamente entregue à contemplação fixa desse rosto... tão fascinada, tão hipnotizada pela sua loucura, como estava o seu olhar pelos movimentos palpitantes da bola em rotação.
A partir desse momento, não vi mais nada na sala, tudo me parecia apagado, embaciado, tudo se me afigurava obscuro em comparação com o fogo que brotava daquele rosto; e, sem dar atenção a mais ninguém, observei, talvez durante uma hora, apenas aquele homem e cada um dos seus gestos. Um luz brutal iluminou-lhe os olhos, o novelo convulso das mãos foi bruscamente desfeito como por uma explosão, e os dedos alargaram-se com violência, frementes, mal o croupier empurrou, em sua direcção, vinte moedas de ouro.
Nesse momento, o seu rosto iluminou-se e rejuvenesceu por completo; as rugas desfizeram-se lentamente; os olhos começaram a brilhar; o corpo antes contraído, endireitou-se, tornou-se leve como um cavaleiro impelido pelo entusiasmo do triunfo; os dedos faziam tilintar com amor e vaidade as moedas redondas, obrigando-as a escorregar umas de encontro às outras, fazendo-as dançar e tinir como numa brincadeira. Depois, voltou de novo a cabeça com inquietação, percorreu o pano verde com as narinas dilatadas como um cãozinho de caça farejando a boa pista, e, a seguir, num gesto rápido e nervoso, atirou todas as suas moedas de ouro para um dos quadros.
E logo começou a mesma atitude de expectativa, a mesma hipertensão."