março 10, 2010

A Ilha Debaixo do Mar - Isabel Allende

"Para quem era uma escrava na Saint-Domingue dos finais do século XVIII, Zarité tinha tido uma boa estrela: aos nove anos foi vendida a Toulouse Valmorain, um fazendeiro rico, mas não conheceu nem o esgotamento das plantações de cana, nem a asfixia e o sofrimento nos moinhos, porque foi sempre uma escrava doméstica. A sua bondade natural, força de espírito e noção de honra permitiram-lhe partilhar os segredos e a espiritualidade que ajudavam os seus, os escravos, a sobreviver, e a conhecer as misérias dos amos, brancos. Zarité converteu-se no centro de um microcosmos que era um reflexo do mundo da colónia: o amo Valmorain, a sua frágil esposa espanhola e o seu sensível filho Maurice, o sábio Parmentier, o militar Relais e a cortesã mulata Violette, Tante Rose, a curandeira, Gambo, o galante escravo rebelde... e outras personagens de uma cruel conflagração que acabaria por arrasar a sua terra e atirá-los para longe dela. Quando foi levada pelo seu amo para Nova Orleães, Zarité iniciou uma nova etapa onde alcançaria a sua maior aspiração: a liberdade. Para lá da dor e do amor, da submissão e da independência, dos seus desejos e os que lhe tinham imposto ao longo da sua vida, Zarité podia contemplá-la com serenidade e concluir que tinha tido uma boa estrela."

Que bom que foi voltar a Isabel Allende. Já sentia falta das histórias dela, carregadas de vida, de sentimentos e de pessoas reais. :) É tão agradável aprender História através da escrita de Isabel Allende, tudo fica tão bem ligado e é-nos fácil sentir que estamos em todos os locais e acontecimentos que relata.

A Ilha Debaixo do Mar é sobre a escravatura nos fins do século XVIII. O livro está dividido em duas partes, na primeira é-nos dado a conhecer a ilha de Saint-Domingue, actual Haiti, uma colónia francesa e um dos principais destinos dos escravos chegados de África, mais especificamente da Guiné. Na segunda parte, a acção desloca-se para Nova Orleães, antiga colónia francesa, depois espanhola e por fim entregue aos estadudinenses.
A história de Zarité serve de pretexto para visitar estes lugares, conhecer as pessoas e a forma como viviam e pensavam.
Com Zarité vivemos a angústia e a injustiça da escravidão, com ela sentimos a revolta e o choque por nos apercebermos que é no pior que existe em nós que mais nos assemelhamos:
Não há nada tão perigoso como a impunidade, meu amigo, é nessa altura que as pessoas enlouquecem e são cometidas as piores bestialidades; não importa a cor da pele, são todos iguais. Se o senhor visse o que eu vi, seria obrigado a questionar a superioridade da raça branca, que tanta vezes discutimos.
Com Zarité assistimos à revolta de milhões de negros, contra a escravidão, que ocorreu em Saint-Domingue e tornou o futuro Haiti no primeiro país do mundo a abolir a escravatura.
Com ela seguimos a consequente fuga dos brancos para Cuba e posteriormente para Nova Orleães, onde pensavam recomeçar a vida longe dos horrores vividos na ilha maldita.
Vivemos com Zarité o medo de que lhe vendam a filha, a preocupação que sente relativamente ao futuro e a ânsia de ser livre. Vivemos o sentimento de abandono de Zarité quando finalmente é liberta e não sabe o que fazer para se sustentar a si à filha. Por último sentimos com Zarité, que embora a sua z'étoile tivesse sido mais brilhante que a de muitas outras mulheres, a sua vida não tinha sido fácil e, por isso, alegramo-nos com o final tranquilo que autora lhe reservou.
Em Nova Orleães a autora dá um maior destaque à vida das mulheres no século XVIII, onde estas eram completamente controladas pelos homens. Sem acesso à educação a única saída que encontravam era o casamento. No caso das mulatas a ambição era o concubinato com algum homem branco que as sustentasse, pois desprezavam os negros e o casamento com brancos estava-lhes vedado por lei.

Isabel Allende encheu este livro de mulheres e de homens, escravos ou não, cheios de dúvidas, inseguranças e medos, tornando-os tão reais que os amamos a todos. Mesmo Valmorain, com todos os seus actos condenáveis, mais não era que o produto de uma época, não sabia ser de outra forma, fez o que se esperava dele porque só assim poderia garantir o seu futuro. Numa conversa que Valmorain tem com o Parmentier, médico e simpatizante da causa abolicionista, resume-se toda a mentalidade de uma época, onde se consideravam os negros como uma mercadoria, acreditando que estes não eram humanos como os brancos:
(...) Os negros têm constituição para trabalhos pesados, sentem menos dor e a fadiga, o seu cérebro é limitado, não sabem discernir, são violentos, desordeiros, preguiçosos, não têm ambição e sentimentos nobres.
- Poder-se-ia dizer o mesmo de um branco embrutecido pela escravidão, monsieur.
- Que argumento tão absurdo! - sorriu o outro, desdenhoso. - Os negros precisam de mão firme. E para que conste que me refiro a firmeza, não a brutalidade.
- Nisto não há meios-termos. Uma vez aceite a noção de escravatura, o trato vem a dar no mesmo - rebateu o médico.
- Não estou de acordo. A escravidão é um mal necessário, a única forma de tratar de uma plantação, mas pode ser feita de forma humanitária.
- Possui e explorar outra pessoa não pode ser humano - replicou Parmentier.

Embora o racismo e a exploração de homens e mulheres não sejam novidade, a verdade é que nunca deixará de me chocar. Há coisas que pura e simplesmente não consigo perceber e, tenho para mim, que é melhor assim. No dia em que vislumbrar algum sentido em sentimentos destes é porque perdi qualquer sentido de justiça, humanidade e moralidade e, por isso, façam o favor de me internar.

Enfim, é mais um livro excepcional da Isabel Allende. Só tive alguma dificuldade em seguir a cronologia dos acontecimentos porque a passagem do tempo era referida assim muito por alto. Mas nada que contamine a história, pelo menos para mim. Vale mesmo a pena ler A Ilha Debaixo do Mar! :)

P.S. Mais uma vez, para os interessados, a entrevista dada pela autora ao programa da RTPN, Conversas de Escritores.

4 comentários:

  1. Ainda não li este da autora, mas concordo contigo Isabel Allende conta histórias com sentimento e com personagens reais!
    Li "Paula", que tem uma carga emocional muito forte. E "A Cidade dos Deuses Selvagens", que foi o primeiro livro que li da autora.

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  2. O "Paula" é bom, não só pela escrita, mas também porque é sobre a filha da Isabel Allende.
    "A Cidade dos Deuses Selvagens", "O Reino do Dragão de Ouro" e "O Bosque dos Pigmeus" são uma trilogia que ela escreveu para os netos, por isso são diferentes dos outros livros dela.
    Para poderes apreciar mesmo a escrita dela tens de ler os outros. Qualquer um deles será muito bom, embora ainda não tenha lido o "Zorro" e "Inês da Minha Alma". :)

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  3. Hum... Não sabia que era uma trilogia! Numa próxima incursão a uma livraria irei estar atenta aos livros da autora e seleccionar um outro. Quem sabe se não trago este para casa. :)

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  4. Rittabs@hotmail.com3 de abril de 2010 às 15:55

    Isabel Allende é a maior escritora de todos os tempos.
    O leitor tem aulas de História de povos que desconhecíam, lendo-a. Assim, ficamos mais cultos com a leitura de seus livros. Obrgada
    Isabel Allende por você existir.
    Ritta Barros Sampaio

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