agosto 24, 2011

No Coração desta Terra - J. M. Coetzee

Título original: In The Heart of the Country
Ano da edição original: 1977
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria João Delgado
Editora: Publicações Dom Quixote (Colecção Autor Nobel - Revista Sábado)

"Numa fazenda remota da África do Sul, a protagonista deste romance lança um olhar sobre a vida de onde foi excluída. Ignorada por um pai duro, desprezada e temida pelos criados, é uma mulher amarga e inteligente, cuja docilidade aparente esconde uma vontade desesperada de não se tornar «um dos esquecidos da história». Quando o pai arranja uma amante africana, essa vontade vai precipitar uma vingança que lembra uma reacção química entre o colonizador e o colonizado e entre os anseios europeus e a vastidão e solidão de África. No Coração desta Terra é uma obra de uma força irresistível. J. M. Coetzee transformou, com uma enorme segurança e uma visão penetrante, um romance de uma família num espelho da experiência colonial."

Gostei bastante deste livro. É um livro intenso, com uma personagem muitíssimo bem construída e das mais interessantes que já encontrei na literatura. Magda é uma mulher, de uma idade indefinida, por vezes parece um rapariga, outras aparenta ser uma mulher mais velha. A maioria das vezes a impressão que passa é que Magda nunca foi criança pois a infância é uma lembrança confusa e perdida no meio de todas a histórias que esta foi inventando para tornar a vida menos dolorosa.
Magda vive com o pai e alguns criados numa fazenda isolada do resto do mundo. Cresceu no deserto total, quer em termos de paisagem quer em termos de afectos. O pai é um homem duro que a ignorava, dispensando-lhe menos atenção do que aquela que dedicava aos criados e aos trabalhos na fazenda. Ignorada pelo pai, temida e desprezada pelos criados, é uma mulher que toda a vida viveu aprisionada a uma vida triste, rotineira e, sem qualquer contacto com o mundo civilizado, viveu toda a vida sozinha. Torna-se, por isso, uma pessoa rancorosa, amargurada e cheia de ódio, um ódio imensurável por tudo e por todos os que a rodeiam, especialmente por ela própria. Ao mesmo tempo sente-se nela uma vontade enorme de viver, de ser feliz e de amar e ser amada. Sente-se nela uma vontade imensa de sentir, o que quer que seja... apenas sentir, algo para além do ódio e do desespero.

Todo o livro é sofrimento, um sofrimento atroz que desespera, porque Magda, enredada numa relação estranha com o pai, praticamente a única pessoa que conhece, oscila entre o respeito, o ciúme e o ódio irracional, quando lhe imagina as mais diversas mortes, todas elas perpetradas por ela. Magda é claramente desequilibrada, doente, o que torna muitas vezes a narrativa confusa, porque é muito difícil de distinguir o que realmente aconteceu daquilo que é fruto da sua prodigiosa imaginação. Mais difícil ainda se torna distinguir as duas realidades quando o discurso de Magda é tudo menos incoerente é, pelo contrário, extremamente lúcido e articulado, pelo que conseguir descortinar o que realmente se passou na vida desta mulher é praticamente impossível. Tanto pode ter assassinado o pai logo nas primeiras páginas e, tudo o que se passou a partir daí não ser mais do que a alucinação de uma louca, como este pode ter sido morto quando decidiu levar uma escrava para a sua cama ou, pode até ser que o pai tenha morrido de velhice, tendo Magda cuidado dele até que a morte decidiu levar um deles.

A única coisa certa neste livro é a solidão extrema de Magda que esta tenta atenuar com uma imaginação descontrolada, vivendo uma vida e idealizando cenários, acontecimentos e conversas, que apenas existem na sua cabeça e, que acabam por levá-la à loucura. Uma loucura consciente, mas um loucura mesmo assim.

Gostei bastante deste livro, principalmente porque gostei muito da personagem da Magda. É ela alma de todo o livro, que consegue manter o interesse, quase exclusivamente recorrendo a conversas com ela própria, expondo-se completamente perante o leitor, ao não esconder os seus desejos mais secretos. É uma personagem desarmante e que dificilmente vou esquecer.

Gostei também da escrita de Coetzee, que conseguiu manter-me interessada na leitura de um livro cuja estrutura narrativa se assemelha muito à de um diário. O livro não tem capítulos e sim notas, registos numerados de 1 a 266, ao longo das quais Magda vai arrumando a sua história. Não sou de diários e esta estrutura deixou-me instantaneamente de pé atrás mas, mérito para o escritor (e este foi o seu primeiro livro!), foi por pouco tempo porque a leitura foi, em certas alturas, quase compulsiva.

Recomendo, como é óbvio! :)

Excerto:
"A minha raiva fica tolhida entre quatro paredes. Fazendo ricochete nas placas de estuque, nos azulejos, nas tábuas e no papel de parede, as minha explosões de raiva são-me devolvidas, colam-se à minha pele, impregnam-se na minha pele. Embora eu possa parecer uma máquina com dois polegares móveis que faz trabalhos domésticos, na realidade sou uma esfera que gira com uma energia violenta, pronta a explodir mal algo me toque. E embora haja, dentro de mim, um impulso que me incita a ir lá para fora explodir, inofensivamente, no meio do nada, receio que haja um outro impulso - sou cheia de contradições - dizendo-me para me esconder num canto com uma aranha, a viúva negra, e lançar o meu veneno a quem passar por perto. «Toma, pela juventude que nunca tive!», cicio eu e cuspo, se é que as aranhas sabem cuspir."

3 comentários:

  1. Adquiri este livro através da revista focus e a sinopse despertou-me a atenção. A tua opinião deixou-te ainda mais curiosa.

    Boas Leituras!

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  2. Landa: É um livro que vale a pena ler. Surpreendeu-me que tenha sido o primeiro livro que o autor escreveu.

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    1. Foi o segundo livro que ele escreveu, publicado em 1977. O primeiro tem o título de Dusklands (1974)e não sei se está traduzido para português. Mas é verdade que é surpreendente o talento que patenteia numa idade tão jovem para um escritor. O livro é extraordinário, de facto.

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