julho 12, 2016

No País das Últimas Coisas - Paul Auster

Título original: In the Country of Last Things
Ano da edição original: 1987
Autor: Paul Auster
Tradução: José Vieira de Lima
Editora: Edições ASA

"Esta é a história de Anna Blume e da sua jornada em busca do irmão desaparecido numa cidade sem nome. Mas tal como a cidade, a sua tarefa está condenada. A cidade transformou-se num campo de batalha onde imperam a miséria, violência e a selvajaria. Todos procuram algo ou alguém que desapareceu. Todos lutam para suprir a fome: no sentido literal, uma vez que os alimentos são escassos; e fome também no sentido abstracto, pois os últimos resquícios de humanidade impelem os cidadãos a procurar o amor e a partilha de linguagem e significado.
Através da solidão de Anna, Paul Auster conduz-nos a um mundo indeterminado e devastado no qual o eu desaparece entre os horrores a que o lento apagar da moral humana conduz. Não se trata apenas de um mundo imaginário e futurista - mas de um mundo que reflecte o nosso e, ao fazê-lo, lida com algumas das nossas mais sombrias heranças. Nesta visão apocalíptica de uma cidade despojada da sua humanidade, pulsa um inesquecível romance sobre a condição humana"

A história de No País das Últimas Coisas, passa-se num país deste mundo, do nosso mundo. Nesse país sem nome, numa capital desconhecida, a grande maioria das coisas que conhecemos deixou de existir. É um país colapsado, onde não se produz nada e a grande maioria das pessoas que nele vivem têm como objectivo morrer, das mais diversas formas. Uns desejam morrer a correr até à exaustão, são os Corredores, outros, os Saltadores escolhem saltar de edifícios. Existem Clínicas de Eutanásia, para alguns privilegiados, que têm à disposição do cliente vários pacotes, sendo que o mais caro consiste num cruzeiro de semanas onde o suicida terá direito a todos os luxos terrenos outrora existentes, e no fim uma injecção letal que lhe põe fim ao sofrimento. :s
Existem muito poucas formas de subsistência, sendo uma delas a recolha de lixo, ou aquilo que nas nossas sociedades consideramos como lixo. Electrodomésticos que não funcionam mas cujas peças podem ter ainda alguma utilidade, chávenas partidas, pequenos pedaços de cordel, tampas de plástico, tábuas de madeira intactas, etc, podem ser pequenos tesouros que permitem a quem os encontrar viver mais uns dias.
Este país produz energia através da queima dos seus mortos e dejectos. Os mortos são tão valiosos que, se não entregarmos os nossos mortos para incineração o mais certo e sermos condenados a trabalhos forçados num sítio ainda mais desolador do que aquele onde vivemos.

Anna Blume parte para este país, em busca do irmão. O que encontra é algo para o qual ninguém poderia estar preparado. A luta pela sobrevivência (se fizerem parte do grupo de pessoas que não querem morrer) é de tal forma uma constante que Anna acaba por ser sugada para uma espécie de buraco negro, onde não lhe resta tempo para procurar saber o que aconteceu a irmão desaparecido.
A violência é constante e as pessoas pensam apenas em si. Ninguém parece questionar o que aconteceu, como é que se chegou aquele estado, ou o que se pode fazer para melhorar o mundo onde vivem. O porquê de ninguém sair do país e abandonar um lugar que não tem mais nada para oferecer não é claro. Fala-se da construção de muros, e sub-entende-se que o governo vigente, o que quer que isso queira dizer num sítio daqueles, controla o fluxo de pessoas. O porquê do resto do mundo não ter, aparentemente, nada a dizer sobre O País das Últimas Coisas, também é um mistério. Ou talvez não. Não vivemos nós, o resto do mundo, de forma um pouco autista, às vezes até esquizofrénica, com países comparáveis ao País das Últimas Coisas? Creio que sim.

No País das Últimas Coisas é um livro estranho, num mundo estranho. Paul Auster traz-nos mais uma vez uma história de desespero, de perda, com personagens sofridas e sem esperança. Sobreviventes, num cenário pós-apocalíptico, vivem um dia de cada vez. No entanto, não poderia ser Paul Auster se não terminasse com uma ténue esperança de dias melhores. :)

É um livro de dimensão pequena, mas cheio de muitas coisas que nos fazem pensar. Recomendo, não só por ser Paul Auster. Recomendo porque é bom e é uma leitura que não vos vai deixar indiferentes. Para além disso, e mais uma vez, tem um título muito bom.:)


Excerto (pág. 9):
"Não estou à espera que compreendas. Tu não viste nada disto, e, mesmo que tentasses, não serias capaz de o imaginar. Estas são as últimas coisas. Uma casa está aqui um dia, e, no dia seguinte, desapareceu. Uma rua por onde caminhámos ontem já não existe hoje. Mesmo o tempo varia constantemente. A um dia de sol segue-se um dia de chuva, a um dia de neve segue-se um dia de nevoeiro, um suave calor dá lugar ao fresco, o vento a um ar parado, a um período de um frio cortante sucede, no meio do Inverno, uma tarde como a de hoje, uma tarde de uma luz fragrante, tão cálida que não precisamos de vestir mais do que uma simples camisola. Quando vivemos na cidade, aprendemos a não contar com coisa nenhuma. Fechamos os olhos por um momento, viramo-nos para olhar para outra coisa qualquer, e, de súbito, aquilo que tínhamos à nossa frente desapareceu. Nada dura, compreendes, nada, nem mesmo os pensamentos dentro da nossa cabeça. E não vale a pena perdermos o nosso tempo à procura seja do que for. Quando uma coisa desaparece, é o seu fim."

Deixem Falar as Pedras - David Machado

Título original: Deixem Falar as Pedras
Ano da edição original: 2011
Autor: David Machado
Editora: Publicações Dom Quixote

"No dia em que se ia casar, Nicolau Manuel foi levado pela Guarda para um interrogatório e já não voltou. Viveu, assim, quase toda a vida na urgência de contar a verdade a Graça dos Penedo, a noiva que mais tarde lhe seria arrebatada pelo alfaiate que lhe fizera o fato de casamento. Porém, sempre que se abria uma possibilidade, uma ameaça desviava-o dramaticamente do seu destino - e agora, meio século volvido, está velho demais para querer mudar as coisas, gastando os dias com telenovelas.
De tanto ouvir ao avô a sua história rocambolesca, Valdemar - um rapaz violento e obeso apaixonado pela vizinha anoréctica - não desistiu, mesmo assim, de fazer justiça por ele. E, ao encontrar casualmente a notícia da morte do alfaiate, sabe que chegou a hora de ir falar com a viúva: até porque essa será a única forma de resgatar Nicolau Manuel da modorra em que se deixou afundar.
Alternando a narrativa dos sucessivos infortúnios de Nicolau Manuel - que é também a história de Portugal sob a ditadura, com os seus enganos, perseguições e injustiças - com a de um adolescente que mantém um diário com numerosas passagens rasuradas como instrumento de luta contra o mundo -, Deixem Falar as Pedras é um romance maduro e fascinante sobre a transmissão das memórias de geração em geração, nunca isenta de cortes a acrescentos que fazem da verdade não o que aconteceu, mas o que recordamos."

As minhas últimas leituras têm sido agradáveis descobertas de escritores nunca antes lidos. David Machado andava debaixo de olho há algum tempo, e nesta Feira do Livro de Lisboa veio comigo para casa.

Deixem Falar as Pedras é um livro sobre as memórias e a transmissão das mesmas, neste caso de um avô ao seu neto. Valdemar cresceu a ouvir as histórias do seu avô excêntrico. O avô viveu uma vida impossível e absurda. De tanto ouvir as histórias de Nicolau e ao ver o estado debilitado em que o avô se encontra, Valdemar chama a si a responsabilidade de vingar as injustiças sofridas por ele e de contar a verdade do avô à única mulher que este amou em toda a vida, Graça dos Penedo, e com quem esteve mais de 50 anos sem conseguir falar.

O livro divide-se entre as histórias que Nicolau Manuel contou ao neto e as angústias e preocupações de um adolescente.
Valdemar registou religiosamente num caderno as histórias que foi ouvido do avô, para que na transmissão da verdade do avô, não fossem introduzidas alterações devido a falhas de memória ou falsas memórias que ele pudesse ter das histórias que ouviu, vezes sem conta.
Curiosamente é no registo do que lhe acontece que Valdemar vai exercendo alguma censura, com algumas partes da narrativa rasuradas. As histórias do avô são incontestáveis.


Nicolau Manuel concentra a sua sede de justiça pelo que lhe aconteceu numa única pessoa, o alfaiate que fez o seu fato de casamento e que, veio a casar com a sua noiva Graça dos Penedo. Culpa o alfaiate de todos os males que lhe aconteceram, de toda a tortura que sofreu às mãos da PIDE. Culpa-o porque lhe é impossível acreditar que a perseguição possa ter sido fruto do azar? Culpa-o porque lhe parece impensável que toda a sua vida tenha sido condicionada sem que a polícia política tivesse razões efectivas para tal, sem que tenha havido lugar a denúncias? Culpa-o porque é menos assustador acreditar na crueldade e no ciúme de um único homem, do que acreditar que um grupo de homens possa torturar e perseguir um homem anos a fio, apenas e só porque um dia foi apanhado nos seus radares e estava no sítio errado à hora errada, apenas e só porque sim? 

Até  que ponto as memórias que todos temos reflectem a realidade do que se passou? Até que ponto deturpamos a realidade, de forma consciente ou não, quando contamos uma história?
Eu, por exemplo, apercebi-me há bem pouco tempo de que uma das minhas memórias de infância não podia ser real... terei sonhado? Provavelmente. Porque é que tive esta memória como certa até tão tarde? Não sei, talvez porque era uma boa memória, porque desejei como só as crianças sabem desejar que fosse real. :)

Isto leva-nos a questionar a veracidade daquilo que nos dizem ter acontecido. No mínimo a não dar como certo tudo o que nos dizem. Se nem nas nossas memórias podemos confiar, porque haveremos de acreditar cegamente nas dos outros?

Gostei bastante deste livro. A escrita é fluida, as personagens bem construídas e a história original. David Machado é um escritor a manter debaixo de olho. Além disso tem um título fabuloso! :)

Recomendo.

Boas leituras!

Nota: Recomendo também o livro de Carlos Machado, Um Amor sem tempo, pai de David Machado. A minha opinião aqui:

Excerto (pág. 328):
"O meu pai começou a contar uma história sobre o meu avô, uma história que eu não conhecia, que o meu avô nunca me tinha contado, uma história onde o meu avô não era perseguido, nem torturado, nem atraiçoado, uma história sobre um dia qualquer há mais de trinta anos, quando o meu avô ensinou o meu pai a nadar, só eles os dois, sozinhos, a falar e a rir, a tarde a na outra margem da barragem e eles a chapinharem na água... Eu não quero pensar muito sobre a história (que nem sequer é exactamente uma história). Tenho medo de serpentear demasiado pelas palavras do meu pai e perceber que se calhar algumas são falsas, que a possibilidade de alguma coisa ser mentira existe. Acredito na história. Um dia peço ao meu pai que a conte outra vez. Porque é uma das melhores histórias sobre o meu avô que já ouvi alguém contar."